Era uma manhã quente de domingo quando a notícia se espalhou pela cidade: Dona Eucrasia havia partido. Com seus bem vividos 89 anos, ela sempre fora uma mulher de pulso firme, conhecida por manter a família unida — ou ao menos era o que parecia. Em sua última festa de aniversário, todos compareceram: filhos, netos, sobrinhos, primos, até os cunhados mais distantes apareceram. Sorrisos largos, brindes e discursos emocionados. Mas, no fundo, havia algo além do afeto: a curiosidade sobre a tal herança.
E então veio a revelação: Dona Eucrasia, no auge de sua sagacidade, havia deixado 50% da parte que não estava reservada à herança para a Igreja.
Na sala, os três filhos se olharam com espanto e indignação.
A neta mais velha, de boca aberta, exclamou: “A Igreja ficou com um patrimônio maior do que a mamãe!” E, então, a filha mais velha de Dona Eucrasia se manifestou: “Eu sempre fui a que mais cuidou dela”, começou Helena, já antecipando a defesa. “Vocês só apareciam para as festas!”
Marcos, o filho do meio, revirou os olhos. “Ah, claro, porque ninguém mais além de você tem tempo para isso, né? Eu estava trabalhando para garantir que nossa mãe tivesse conforto.”
E ali começou. As mágoas antigas emergiram como feridas mal curadas. Helena trouxe à tona a vez em que Marcos, com 12 anos, quebrou o vaso da avó e nunca admitiu. Marcos acusou a caçula, Sofia, de só querer saber de viajar e gastar o dinheiro da mãe. Sofia, por sua vez, olhou para os dois com desdém. “Vocês só sabem pensar em bens materiais. Eu estava buscando experiências, enquanto vocês brigavam por quinquilharias!”
O advogado observava tudo, impassível. Talvez, lá no fundo, até soubesse que aquilo aconteceria. Já vira muitas famílias desmoronarem por muito menos, e até contestarem a última vontade do falecido em dar uma destinação ao seu patrimônio.
No final das contas, o testamento, que deveria simbolizar a última vontade de Dona Eucrasia, tornou-se o estopim para uma guerra declarada.
Nessas horas, não há bom senso, nem compreensão de que a herança é um bônus.
As reuniões de domingo, tão calorosas no passado, tornaram-se lembranças distantes. O riso deu lugar ao silêncio, e a casa da matriarca, antes cheia de vida, agora estava vazia.
Talvez fosse isso que Dona Eucrasia quisesse: mostrar que o verdadeiro legado não está nas propriedades ou joias, mas nos laços que construímos. Ou destruímos.
No entanto, o que se viu foi cada um preso aos bens materiais conquistados pelos seus genitores e não aos sentimentos de amor.
E as brigas continuam, e a última vontade se tornou uma guerra e uma mesquinharia.